quinta-feira, 12 de julho de 2012

Eu, etiqueta

     No texto de hoje, da tag "poesia e moda", compartilho com vocês um poema de Drummond, do
livro Corpo, que mostra de forma clara o processo de coisificação das pessoas, e que não
passamos de meros objetos de manipulação do capitalismo. Não sou Marxista xiita nem tampouco
hipócrita de negar que também sou vítima desse processo. E o pior, uma vítima consciente de sua condição. kkk 
    
     Mas vou deixar de papo mala que Drummond sabe dizê-lo muito melhor que eu. rs


Eu, etiqueta

Em minha calça está grudado um nome 

Que não é meu de batismo ou de cartório 

Um nome... estranho. 
Meu blusão traz lembrete de bebida 
Que jamais pus na boca, nessa vida, 
Em minha camiseta, a marca de cigarro 
Que não fumo, até hoje não fumei. 
Minhas meias falam de produtos 
Que nunca experimentei 
Mas são comunicados a meus pés. 
Meu tênis é proclama colorido 
De alguma coisa não provada 
Por este provador de longa idade. 
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, 
Minha gravata e cinto e escova e pente, 
Meu copo, minha xícara, 
Minha toalha de banho e sabonete, 
Meu isso, meu aquilo. 
Desde a cabeça ao bico dos sapatos, 
São mensagens, 
Letras falantes, 
Gritos visuais, 
Ordens de uso, abuso, reincidências. 
Costume, hábito, premência, 
Indispensabilidade, 
E fazem de mim homem-anúncio itinerante, 
Escravo da matéria anunciada. 
Estou, estou na moda. 
É duro andar na moda, ainda que a moda 
Seja negar minha identidade, 
Trocá-la por mil, açambarcando 
Todas as marcas registradas, 
Todos os logotipos do mercado. 
Com que inocência demito-me de ser 
Eu que antes era e me sabia 
Tão diverso de outros, tão mim mesmo, 
Ser pensante sentinte e solitário 
Com outros seres diversos e conscientes 
De sua humana, invencível condição. 
Agora sou anúncio 
Ora vulgar ora bizarro. 
Em língua nacional ou em qualquer língua 
(Qualquer, principalmente.) 
E nisto me comparo, tiro glória 
De minha anulação. 
Não sou - vê lá - anúncio contratado. 
Eu é que mimosamente pago 
Para anunciar, para vender 
Em bares festas praias pérgulas piscinas, 
E bem à vista exibo esta etiqueta 
Global no corpo que desiste 
De ser veste e sandália de uma essência 
Tão viva, independente, 
Que moda ou suborno algum a compromete. 
Onde terei jogado fora 
Meu gosto e capacidade de escolher, 
Minhas idiossincrasias tão pessoais, 
Tão minhas que no rosto se espelhavam 
E cada gesto, cada olhar 
Cada vinco da roupa 
Sou gravado de forma universal, 
Saio da estamparia, não de casa, 
Da vitrine me tiram, recolocam, 
Objeto pulsante mas objeto 
Que se oferece como signo dos outros 
Objetos estáticos, tarifados. 
Por me ostentar assim, tão orgulhoso 
De ser não eu, mas artigo industrial, 
Peço que meu nome retifiquem. 
Já não me convém o título de homem. 
Meu nome novo é Coisa. 

Eu sou a Coisa, coisamente.




Um comentário:

"Seja bem vindo quem vier por bem."